Há alguns anos atrás, duas renomadas companhias de navegação brasileira travaram uma intricada batalha judicial envolvendo debate sobre responsabilidade resultante de um abalroamento entre dois navios, ocorrido em 1999. O incidente em questão levou o Tribunal Marítimo e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a examinarem e deliberarem a respeito da responsabilidade das partes no tocante à conduta de suas embarcações vis-à-vis os dispositivos do RIPEAM (Regulamento Internacional para evitar Abalroamentos no Mar de 1972) inclusive sobre a impossibilidade de limitação de responsabilidade resultante de abandono de navio e frete no sistema jurídico brasileiro. Os fatos relativos ao caso ocorreram no ano de 1999, quando um navio-tanque, após ter acabado de deixar o porto, observou a seu bombordo que havia um navio graneleiro navegando em sua direção, em uma situação de rumos cruzados. Seguindo as disposições do RIPEAM, ratificadas pelo governo brasileiro, o navio-tanque encontrava-se em uma situação com direito de preferência de passagem. Com isto em mente, o navio-tanque manteve sua posição e velocidade, como prevê o RIPEAM, e acompanhou as ações do graneleiro, i.e., a embarcação a que deveria manobrar para manter-se afastada. O graneleiro, no entanto, não executou qualquer manobra, nem respondeu aos sinais e contatos por radio feitos pelo navio-tanque, o que levou este último a dar uma difícil guinada de emergência à boreste para tentar evitar uma colisão. Apesar de tal procedimento de emergência, o graneleiro acabou abalroando o navio-tanque com sua proa causando sérios danos ao navio-tanque, o qual teve que ser rebocado para um estaleiro para reparos imediatos, enquanto que o graneleiro sofreu apenas alguns arranhões dando prosseguimento a sua viagem. O incidente foi então objeto de um inquérito administrativo conduzido pela Capitania dos Portos local, na qual foram tomados diversos depoimentos e testemunhos por parte de ambas embarcações e coletadas provas técnicas e documentais sobre as possíveis causas do acidente a fim de determinar a parte responsável pelo mesmo. Após a conclusão do inquérito administrativo, o caso foi encaminhado ao Tribunal Marítimo, onde foi instaurado um processo administrativo contra os comandantes de ambas embarcações. Após exaustivo debate no qual ambos comandantes acusavam-se mutuamente, o Tribunal Marítimo entendeu que ambos os comandantes poderiam ter adotado medidas para evitar o incidente e, portanto, atribuiu a cada um dos comandantes 50% de culpa pelo incidente. A despeito da decisão proferida pelo tribunal administrativo, os proprietários do navio-tanque decidiram levar o caso à esfera judicial, ajuizando então uma ação indenizatória contra os proprietários do graneleiro pelos danos sofridos por sua embarcação. Durante uma longa batalha judicial foi realizada uma extensa perícia naval, a qual entendeu que o graneleiro não tomou o devido cuidado ao navegar no piloto automático e, em sua condição de manter-se longe do navio-tanque, deveria ter manobrado a fim de evitar a colisão. Assim, o perito concluiu que a principal causa para o incidente originou-se por culpa do graneleiro. Em vista disso, o juiz de primeira instância entendeu que as conclusões da perícia náutica foram mais abrangentes e precisas do que a fundamentação da decisão proferida pelo Tribunal Marítimo. Na qualidade de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, as decisões do Tribunal Marítimo são de natureza administrativa e muito embora representem um importante elemento de prova, as decisões podem ser revistas pelo Judiciário. Assim, o juízo de primeira instância considerou a conduta do graneleiro culposa e condenou o mesmo a indenizar os proprietários do navio-tanque por dano indireto e lucros cessantes, inclusive as perdas resultantes da impossibilidade do autor em renovar um contrato com um de seus clientes. Insatisfeitos com esta decisão, os proprietários do graneleiro recorreram da decisão perante o Tribunal de Justiça Estad8ual, insistindo na responsabilidade igual de ambas as partes pelo acidente. Após examinar a questão e após conduzir uma segunda perícia náutica, a qual chegou às mesmas conclusões da perícia anterior, o Tribunal de Justiça, por maioria de votos, decidiu que as indenizações deveriam ser feitas em uma proporção de dois-terços, levando em consideração que o comandante do navio-tanque também teria contribuído em menor proporção para o acidente. Um dos juízes, entretanto, manteve o entendimento que o graneleiro era totalmente, ou cem por cento, responsável pelo incidente. O Tribunal de Justiça também rejeitou o argumento de defesa sustentado pelos proprietários do graneleiro no tocante à limitação de responsabilidade resultante de abandono de navio e frete consoante o Artigo 494 do Código Comercial. Abandono é o ato através do qual o proprietário de uma embarcação entrega o navio e frete aos credores a fim de isentar-se de responsabilidades resultantes das ações do comandante do navio. O Tribunal de Justiça decidiu que este preceito deixou de existir no direito comercial brasileiro. O Artigo 494 do Código Comercial brasileiro de 1850, o qual estabelece disposições sobre este preceito, foi totalmente substituído pela Convenção Internacional Para a Unificação de Certas Regras Relativas à Limitação da Responsabilidade dos Proprietários de Embarcações Marítimas e Respectivo Protocolo de Assinatura datado de 25 de agosto de 1924, e ratificada pelo Brasil através do Decreto no. 350/1935. Além disso, o tribunal de justiça observou que de acordo com o Código Civil Brasileiro, as ações dos comandantes de navio não podem ser consideradas autônomas da dos armadores que as escolhem, uma vez que os empregadores são responsáveis pelas ações de seus prepostos. Foi igualmente considerado relevante que a decisão reafirma a aplicação do artigo 944 do Código Civil, que estipula que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, e que, portanto a limitação de responsabilidade deve ser desconsiderada. Na sequência, os proprietários do navio-tanque apresentaram então embargos infringentes perante o tribunal, em uma tentativa de reverter a distribuição proporcional da culpa estabelecida na decisão anterior do tribunal, argumentando que o graneleiro deveria ser considerado cem por cento responsável pelo evento. Uma nova Câmara de desembargadores foi apontada para julgar o caso a qual em última análise concluiu por unanimidade que o graneleiro deveria de fato ser considerado cem por cento responsável pela colisão e, portanto, deveria reparar as perdas sofridas pelo navio-tanque, reformando, então, a decisão anterior no tocante a esta parte. Nesta fase, mais de uma década já havia decorrido desde o incidente. E, ao invés de prolongar a batalha judicial para os Tribunais Superiores em Brasília, as partes entraram em um acordo para solucionar o caso e resolver esta longa e interessante disputa. www.kincaid.com.br Godofredo Mendes ViannaSócio do escritório Law Offices Carl Kincaid – o qual poderá ser contatado através do e-mail godofredo@kincaid.com.br. Lucas Leite MarquesAdvogado Sênior do escritório Law Offices Carl Kincaid – o qual poderá ser contatado através do e-mail lucas@kincaid.com.br