
Adiada para 20 de junho, a audiência entre a autoridade do Canal do Suez e a empresa japonesa Shoei Kisen pode até resultar em algum acordo, mas, ao que tudo indica, a saga do prejuízo causado pelo encalhe do Ever Given ainda demora a ter um fim. Saber quem vai pagar a conta — ou quantos vão dividir esse valor milionário — pode levar anos.
“Em um primeiro momento, haverá uma pulverização das demandas de prejuízos. Mas, conforme o processo correr, as cobranças vão afunilar em alguns personagens principais”, explica o advogado Lucas Leite Marques, sócio do Kincaid Mendes Vianna Advogados, especialista em Direito Marítimo, contencioso e arbitragem e portos e infraestrutura.
O Ever Given, gigante de 450 metros, com capacidade para 20.388 TEUs, encalhou em 23 de março e, por seis dias, bloqueou a passagem no Canal do Suez, no Egito. Desde então, está retido no Egito. Em um primeiro momento, a Autoridade Portuária do Suez (SCA) exigiu uma multa de US$ 916 milhões, mas acabou reduzindo esse valor para US$ 550 milhões e ofereceu liberar a embarcação mediante um depósito de US$ 200 milhões. A investigação prossegue, mas, enquanto os egípcios acusam o navio de estar trafegando rápido demais, os japoneses responsabilizam a SCA por não ter destacado rebocadores para ajudar o Ever Given, em virtude das péssimas condições do tempo.
A contenda judicial ajudará a determinar o culpado, mas nem todos os prejuízos serão assumidos por ele ou por sua seguradora. Marques explica que há diversas categorias de danos a serem avaliadas e ressarcidas. Sobre as cargas a bordo, por exemplo, pode-se falar em atrasos ou em mercadorias estragadas.
“Os donos de cargas têm seguros, mas, em geral, não incluem lucros cessantes. Essas discussões, porém, vão ficar por último, já que dependem de a carga chegar ao destino e ser avaliada”, observa o advogado.
Em relação ao navio, armadores e afretadores, em geral, fazem um seguro tradicional, para casco e máquina, que garante ressarcimento em avarias à embarcação, nas despesas para salvamento e nos danos operacionais do próprio canal. Há ainda a cobertura P&I (proteção e indenização), que não é exatamente um seguro. Trata-se, na verdade, de uma especial de associação de ajuda mútua, um fundo constituído por armadores e afretadores para eventuais riscos:
“ O P&I tem uma origem histórica e foi criado para garantir alguma proteção às expedições marítimas, já que era impossível que uma única pessoa bancasse os custos e os riscos”.
Segundo Marques, no julgamento de um caso o Tribunal Marítimo definiu o P&I como “um ajuntamento de interesses de operadores para se autosubsidiar em caso de risco”. Ou seja, não é um seguro, já que não tem prêmio ou sinistro. Se, ao longo de um ano, o valor recolhido entre os associados não é usado, pode, inclusive, ser devolvido. A Shoei Kisen já acionou o UK Club, a entidade de P&I a que pertence.
“A perda de receita de Suez, no período em que o canal ficou bloqueado, será ressarcida por essa cobertura de P&I”, informa o advogado.
O sócio do Kincaid explica que há ainda uma outra frente de indenizações: cerca de 400 embarcações ficaram paradas com o bloqueio do Suez. Isso significa prejuízos tanto em relação ao afretamento — a diária paga ao armador para navegar — quanto sobre cargas que atrasaram ou até se deterioraram por causa da demora em chegar a seus portos de destino.
“Os afretadores costumam a ter seguros diferenciados, para lucros cessantes ou para delay e bloqueio. E, certamente, vão acionar as coberturas, porque, com o Suez parado, não conseguiram navegar com eficiência”, afirma.
E o que muda quando se chegar a um culpado? Se o comandante ou o prático forem incriminados, a empresa japonesa vai ter que assumir o prejuízo que virá em cascata, já que as seguradoras que ressarciram danos tentarão também recuperar suas perdas. Marques lembra que, em Suez, o prático segue ordens do comandante, o que exime a autoridade portuária de culpa em caso de má condução do navio. No Canal do Panamá, a regra é outra.
“No Panamá, a praticarem local é obrigatória e o comando do navio, durante a manobra, fica com o prático. A autoridade portuária prefere correr o risco de pagar uma indenização por erro de um funcionário do que de ver uma importante fonte de renda do país bloqueada por um equívoco alheio”, explica Marques.
O advogado acredita que questões locais podem influenciar nas decisões em torno de indenizações do Ever Given, já que o Suez é uma das maiores fontes de receita do PIB do Egito. Tanto que a empresa japonesa recorreu à Corte Suprema da Inglaterra para solicitar uma limitação de responsabilidade. É uma figura jurídica que, em uma comparação simplista, funciona como o concurso de credores na Lei de Falências brasileira.
“É uma forma de não ficar tão suscetível aos aspectos culturais e econômicos locais”, diz Marques.
Para o especialista em Direito Marítimo, uma coisa é certa: desse incidente e de suas implicações jurídicas, surgiram novos procedimentos, práticas, normas e oportunidades de mercado.
‘’Essas situações têm um efeito pedagógico que leva à implementação de medidas para evitar sua repetição ou para minimizar os danos. As partes prejudicadas vão procurar novas maneiras de se proteger e o mercado seguradora pode oferecer produtos que sejam mais abrangentes”, afirma.
Fonte: Revista Portos e Navios
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