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Clippings - 25/06/12

A Natureza Jurídica das Plataformas Marítimas

Resumo: O presente trabalho visa a traçar um panorama geral do tratamento legal, dispensado, no ordenamento jurídico brasileiro, às plataformas marítimas. Segundo o texto, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência admitem o enquadramento das plataformas na classificação de embarcação. Para os autores, é a Marinha a autoridade competente para definir, caso a caso, se os requisitos necessários à caracterização de embarcação estão presentes em dada estrutura. Adicionalmente, analisa-se a decisão do Conselho de Contribuintes que negou precedente do Supremo Tribunal Federal, em que se reconhecia a competência da Marinha para definir enquadramento de construções marítimas como embarcação. Palavras-chave: embarcação; plataforma; natureza jurídica; competência; Autoridade Marítima.

Abstract: On the present study, the authors provide an overview concerning the legal definition of vessel, in order to argue that platforms may be classified as vessels. The prevailing competence of the Brazilian Navy, as legally safeguarded, places upon the latter the attribution to define whether a structure is, indeed, a vessel. Furthermore, the authors dispute the decision ruled by the Brazilian Federal Revenue’s Taxpayers Council to refute the application of a previous understanding by the Brazilian Constitutional Court in connection with the Navy’s power to define the nature of any and all structures to be placed, float and/or navigate on Brazilian waters. Keywords: vessel; platform; legal nature; attribution; Navy.

I. INTRODUçãO

O crescimento do mercado de hidrocarbonetos no Brasil, cujo ritmo se acentuou após as recentes descobertas na área do pré-sal, tornou premente o enfretamento de temas atinentes à exploração, à prospecção e ao transporte de petróleo e gás natural.

Especificamente em relação à conceituação e à subseqüente classificação das plataformas marítimas, inobstante a relevância da matéria, a doutrina pátria permanece largamente dependente de esforços individuais, sem que haja, contudo, uma abordagem sistemática. O presente estudo não visa, absolutamente, a suprir tão pronunciada lacuna; mas, apenas, contribuir para que se aprofunde o debate.

II. MUDANÇA DE PARADIGMA

A história humana é indissociável da navegação. Desde sua função inaugural – como acessória à pesca, praticada por comunidades isoladas – passando, ao longo dos séculos, a meio primário de troca de mercadorias e de estabelecimento de fluxos migratórios; a navegação se associa ao novo, ao desconhecido. Por sua natureza exploradora, admiram-se homens e mulheres que partem rumo ao infinito que se descortina no horizonte.

Hoje, há novos usos a que a navegação se propõe, e, em muitos casos, o registro imagético de embarcação, gravado no inconsciente de todos nós, não mais corresponde às contemporâneas estruturas que se deslocam sob rios, mares e oceanos. Apesar do estranhamento causado pela distinção visual, não podemos, contudo, nos furtar ao reconhecimento de que outras construções possam ser consideradas como embarcações.[1]

III. DEFINIçãO LEGAL DO CONCEITO DE EMBARCAçãO

Inicialmente, ressalvamos que a legislação brasileira não diferencia o conceito de navio do de embarcação. Embora haja extensa literatura especializada[2], sobretudo, estrangeira, que apresente navio como espécie do gênero embarcação; seguiremos a opção do legislador pátrio, o qual emprega ambos os conceitos de forma indiscriminada, tomando um pelo outro.[3]
Em relação à definição de embarcação, o Decreto Nº 87.648, de 1982, enquanto vigia – antes de ser revogado pelo Decreto Nº 2.596, de 1996 – propugnava:

“Art. 10. O termo embarcação, empregado neste Regulamento, abrange toda construção suscetível de se locomover n’água, quaisquer que sejam suas características.”

Da leitura do citado dispositivo, evidencia-se conceito genérico[4], em relação ao qual o correspondente enquadramento dependeria do cumprimento de 02 (dois) requisitos: (i) formar-se a partir de construção – ou seja, constituir-se como agregado ou composição; e (ii) ser suscetível à navegação – isto é, deter a capacidade de se deslocar, por força própria ou a reboque, na água.[5]

O Decreto Nº 2.596, de 1996, ao revogar o Decreto Nº 87.648, de 1982, acabou por não reproduzir o comando transcrito acima. Esta omissão não se assevera, contudo, como falta de cautela do legislador; mas, ao contrário, revela opção deliberada por não repetir definição, a qual já fora incorporada pela Lei Nº 9.537/1997 – ao dispor sobre a segurança do tráfego aquaviário:

“Art. 2° Para os efeitos desta Lei, ficam estabelecidos os seguintes conceitos e definições:
(…)

V – Embarcação – qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;”

Resta evidente que o dispositivo transcrito acima guarda coerência com a redação do diploma de 1982, tendo sido incluído apenas 01 (um) novo requisito – a sujeição ao registro da autoridade marítima. Tem-se, portanto, segundo a conceituação atual, embarcação como toda construção, sujeita à inscrição e suscetível de se deslocar na água.

Ainda segundo a Lei Nº 9.537/97, a autoridade competente pelo registro – a Marinha[6] – é também responsável pela definição de quais construções capazes de se locomover na água devem ser registradas, sendo, então, consideradas como embarcação.

Nesse sentido, a Marinha do Brasil, por meio da Norma de Autoridade Marítima Nº 1 (Normam I), define quais embarcações estão sujeitas a registro, sendo expressa ao reconhecer que as plataformas deveriam ser consideradas nesta categoria:

“SEçãO I

INSCRIçãO E REGISTRO DE EMBARCAÇÕES
0201 – APLICAçãO

Todas as embarcações brasileiras estão sujeitas à inscrição nas Capitanias dos Portos (CP), Delegacias (DL) ou Agências (AG), excetuando-se as pertencentes à Marinha do Brasil. As embarcações com arqueação bruta maior ou igual a 100, além de inscritas nas CP, DL ou AG, devem ser registradas no Tribunal Marítimo.

As plataformas móveis são consideradas embarcações, estando sujeitas à inscrição e/ou registro. As plataformas fixas, quando rebocadas, são consideradas embarcações, estando, também, sujeitas a inscrição e/ou registro.”

A redação da Normam I, a exemplo daquela contida na Lei Nº 9.537/97, buscou evitar que uma interpretação equivocada redundasse em aplicação exclusivista do conceito de embarcação.

Cumpre, porém, antecipar ponto que será mais bem detalhado no correr do texto: a segmentação das plataformas entre os grupos móvel e fixo, não é rígida, nem o poderia ser.

Quando se determina o registro de plataformas fixas quando rebocadas, não se quer que o ato do registro seja feito em concomitância ao do deslocamento; tampouco, que se subordine o registro à verificação empírica de deslocamento prévio.

Não se pode esperar que a Autoridade Marítima, ao determinar o registro, avalie se de fato houve locomoção na água; até porque o registro, como condição de regularidade da embarcação, deve ser feito antes mesmo de sua entrada em operação.

O objetivo do comando da Normam I, ao reproduzir o dispositivo da Lei Nº 9.537/97, é o de que se avalie a capacidade de navegação da referida estrutura; isto é, verificar a priori se há aptidão para deslocamento sob superfície aquática. Em se constatando a referida capacidade, e reunidas as demais condições prescritas, dever-se-á proceder ao registro.[7]

Vale destacar que o interesse público de que as atividades desempenhadas a bordo de toda e qualquer plataforma sejam fiscalizadas pela Marinha impõe o registro e a correspondente inscrição como imperativo, não se circunscrevendo a atuação da Marinha e o exercício de seu poder fiscalizador a apenas alguns tipos de plataforma, em detrimento de outros. Com efeito, as plataformas em operação no Brasil – independentemente de sua definição como fixas ou móveis – são registradas no Tribunal Marítimo e inscritas na Capitania dos Portos competente, ambos, órgãos auxiliares da Marinha Brasileira.

Ressalte-se que nem a Normam I, nem a Lei Nº 9.537/97 qualificam a navegabilidade, ou determinam qualquer gradação a ser observada. Não há, assim, o requisito de que a navegação seja atividade precípua da estrutura, mas, apenas, que a capacidade de deslocamento sob a água esteja presente como característica.[8]

De fato, a Normam I, em seu item 303, ao versar sobre a outorga de autorização de construção de embarcação e a necessidade de certificação por sociedade autorizada, não poderia ser mais expressa em reconhecer, como contida no gênero embarcação, as plataformas marítimas[9]:

“303 – OBRIGATORIEDADE DE CLASSIFICAçãO

a) Todas as embarcações nacionais que transportem a granel substâncias líquidas nocivas, produtos químicos perigosos ou gases liqüefeitos, em conformidade como Anexo II da Convenção MARPOL, os Códigos IBC/BCH ou IGC/GC, para as quais foram solicitadas Licença de Construção, Alteração (com alteração estrutural de vulto, a ser julgada pela Diretoria de Portos e Costas – DPC), Reclassificação ou Documento de Regularização (atual LCEC) após 09/06/1998, devem, obrigatoriamente, ser mantidas em classe por uma Sociedade Classificadora reconhecida para atuar em nome do Governo Brasileiro na navegação de mar aberto.

b) Todas as embarcações nacionais com AB maior ou igual a 500, incluindo as Plataformas Móveis empregadas nas atividades relacionadas à prospecção e extração de petróleo e gás, para as quais tenham sido solicitadas, após 09/06/1998, Licença de Construção (incluindo LCEC), Licença de Alteração (com alteração estrutural de vulto, a ser julgada pela DPC), Licença de Reclassificação ou Documento de Regularização (atual LCEC), devem, obrigatoriamente, ser mantidas em classe por uma Sociedade Classificadora reconhecida para atuar em nome do Governo Brasileiro na navegação de mar aberto.”

IV. EVOLUçãO DOUTRINÁRIA E O TRATAMENTO DAS PLATAFORMAS MARÍTIMAS NA LEGISLAçãO NACIONAL E INTERNACIONAL

Em passagem inaugural da obra Natureza Jurídica das Plataformas Marítimas, Luciene Strada define plataforma como qualquer estrutura marítima que possua áreas planas acima do nível do mar, usada para operações de exploração, produção e armazenamento de petróleo e gás, ou outras atividades conexas.[10]

Em seguida, retoma a autora a distinção entre plataformas móveis e plataformas fixas: as plataformas móveis (submersíveis; auto-elevatórias; semi-submersíveis; barcaças-sonda e navios-sonda) seriam capazes de se deslocar – por força motriz própria ou a reboque de outras embarcações – por extensos trajetos, sendo que, mesmo em atividade, o deslocamento não se configura como prejudicial ao desempenho das atividades da estrutura.[11] As plataformas fixas, embora deslocáveis sob o mar, teriam o seu uso vinculado à prévia fixação ao subsolo marítimo, permanecendo estáveis, quando em operação.[12]

Em síntese, Strada defende que as plataformas móveis teriam a natureza jurídica de embarcação, enquanto as fixas se classificariam como estruturas. [13] [14]

A distinção entre plataforma fixa ou móvel torna-se, contudo, cada vez mais difícil. Mesmo aquelas estruturas entendidas no passado como fixas incorporam, não raro, dispositivos de segurança que permitem o deslocamento preventivo no caso de risco, advindo de instabilidade climática. As unidades FPSO (Floating, Production, Storage and Loading), exemplo da mobilidade buscada pela indústria do petróleo, agregam em si as atribuições de produção, estocagem e transferência de petróleo, como típica plataforma de produção; preservando, todavia, alto grau de navegabilidade.

Sem nos retermos nesta segmentação, destacamos a existência de inúmeros dispositivos legais que equiparam plataforma – compreendida em seu sentido lato, sem distinção quanto à mobilidade e/ou fixação – à embarcação. Também a aplicação de institutos típicos de embarcação às plataformas mostra-se recorrente no direito estrangeiro.

Aplica-se, por exemplo, o direito de passagem inocente às plataformas que precisem se deslocar de um ponto a outro. Aqui cumpre ressalvar que a exemplo de demais embarcações – por força do disposto nos artigos 18 e 19 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar[15] – não pode a plataforma marítima, quando no exercício de passagem inocente, realizar atividades de pesquisas marinhas, devendo limitar-se ao deslocamento contínuo.

A disciplina da Convenção para Unificação de Certas Regras relativas à Colisão entre Embarcações, de 1910, bem como a da Convenção sobre Certas Regras em relação à Jurisdição Penal em Questões de Colisão e Outros Incidentes da Navegação, de 1952, são extensíveis ao choque de plataformas com outras embarcações. Em sentido categórico, ainda sobre o mesmo tema, a Convenção para a Regulamentação Internacional sobre a Prevenção de Colisões no Mar, de 1972, equipara estruturas com diminuta capacidade de manobra e desvio, inclusive aquelas engajadas em serviços de levantamento hidrográfico/oceanográfico ou em atividades submarinas, ao conceito de embarcação.

Também a Convenção Internacional sobre Segurança da Vida no Mar (SOLAS), de 1974, prevê que os requisitos de segurança exigíveis de embarcação devam ser os mesmos que aqueles a serem observados a bordo de plataformas marítimas.

Frise-se, ainda, que a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969, destinada à garantia de indenização adequada por poluição resultante de derramamento de óleo, conceitua, em seu Art. 1°, navio como toda embarcação marítima ou engenho marítimo flutuante, qualquer que seja o tipo, que transporte efetivamente óleo a granel como carga.

Similarmente, a Convenção MARPOL (Convenção Internacional para a Prevenção de Poluição por Navios), de 1973, dirigida à prevenção da poluição causada por navios, é aplicada indiscriminadamente às plataformas marítimas. De seu Art. 2° consta conceito amplo de navio, estendendo-o a embarcações de qualquer tipo que operem no meio ambiente marinho, alcançando a referida definição estruturas submersíveis e plataformas fixas ou flutuantes.

Exatamente por se admitir que as plataformas estejam sujeitas àqueles riscos, tipicamente assumidos por embarcações, tais como choque, naufrágio, encalhe, explosão, incêndio, pirataria, o mercado de seguros estrangeiro e o nacional aplicam às plataformas parâmetros similares aos de embarcação. No Brasil, os seguros obrigatórios exigíveis das plataformas são os mesmos que aqueles aplicáveis a outras embarcações.[16]

Em relação às normas trabalhistas brasileiras, embora haja regulação específica para os trabalhadores empregados nas atividades de exploração, perfuração, produção e refino de petróleo – conforme o disciplinado pela Lei 5.811/1972 – optou o Ministério do Trabalho e Emprego, por força da Resolução Normativa Nº 72, de 2006, por dispensar tratamento uniforme aos profissionais estrangeiros que ingressem no Brasil, para trabalhar em plataforma ou em outra embarcação, enquadrando-os genericamente como “embarcados”.

Tem-se, ainda, como instituto típico de transferência de posse temporária de plataforma o afretamento, e não a locação. Atribui-se, dessa forma, novamente, instituto típico de embarcação às plataformas marítimas.

Destaca-se, inclusive, que a construção de embarcações, incluídas aqui as plataformas, depende de licença prévia emitida pela Capitania dos Portos, conforme trecho já citado da Normam I.

Também há equiparação no tocante às atribuições do Tribunal Marítimo, o qual – segundo a Lei Nº 2.180, de 1954 – é competente para o julgamento de conflitos decorrentes de questões marítimas, independentemente de o fato discutido referir-se à plataforma ou a outro tipo de embarcação.

V. ANÁLISE DO RECURSO VOLUNTÁRIO N. 139.827

O debate acerca da natureza jurídica das plataformas ganha especial relevância no Direito Tributário, tendo sido a PETRÓLEO BRASILEIRO SA – PETROBRAS surpreendida por autuação bilionária do Fisco, decorrente da falta de recolhimento do Imposto de Renda na Fonte, incidente – segundo a Receita Federal – sobre os rendimentos pagos ou creditados pela locação[17] de plataformas marítimas para prospecção, exploração e produção de petróleo de propriedade de residentes ou domiciliados no exterior, relativos ao perãodo de fevereiro a dezembro de 1998. Cumpre-nos, agora, analisar mais detidamente o conteúdo da correlata decisão.

Em 20 de abril de 2005, a Sexta Turma do Primeiro Conselho de Contribuintes negou provimento a Recurso Voluntário interposto pela PETRÓLEO BRASILEIRO SA – PETROBRAS, em que esta buscava reformar decisão da Primeira Turma/DRJ – Rio de Janeiro/RJ I.

Segundo a PETROBRAS, a cobrança do imposto afigurou-se indevida, uma vez que o Art. 1° da Lei N° 9.481, de 1997[18], estabelecera isenção fiscal para o afretamento de embarcações. Travou-se, então, debate quanto à interpretação legal do conceito de embarcação e sobre o possível enquadramento de plataforma marítima nesta classificação.

Defendeu o Fisco o critério da finalidade para sustentar que apenas as construções destinadas ao transporte de pessoas e/ou cargas sobre e/ou sob a água poderiam ser consideradas como embarcação. Aplicou, na ocasião, critério estrangeiro, nunca acolhido pela legislação brasileira para corroborar a tese de que apenas as estruturas, cuja função precípua seja o transporte adéquam-se ao conceito de embarcação.

Cumpre ressalvar que mesmo o Direito Inglês, pioneiro na adoção do teste da função da principal[19] – a dizer, a avaliação da função precípua a que dada estrutura se propõe – admite a aplicação deste critério unicamente para distinguir a espécie navio do gênero embarcação; não sendo o teste da função principal – real work – usado para aferir se dada construção é ou não embarcação. Considerando, porém, que no ordenamento jurídico brasileiro não se diferencia navio de embarcação, não encontra abrigo o emprego do teste da função principal.

Observe-se, ainda, que as autoridades judiciais inglesas, ao aplicar o referido critério, em decisão de 2011, no caso Clark (Inspector of Taxes) v Perks Macleod (Inspector of Taxes) v Perks Guild (Inspector of Taxes) v Newrick and another[20], entenderam que as plataformas marítimas móveis usadas na exploração de petróleo deveriam ser consideradas navios – por serem aptas a se deslocar sob a água.

Depreende-se, assim, da leitura do Acórdão prolatado pela Sexta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes que nele se confundiu a aptidão para navegação – requisito imposto pela Lei N° 9.537/1997 e sinônimo de capacidade de deslocamento na água – com a função primordial do transporte.

In verbis, cita-se trecho da referida decisão em que se reconhece a navegabilidade da plataforma, recusando-se, contudo, seu enquadramento como embarcação, por ter destinação diversa que a de transporte:

(…) apesar de a contribuinte afirmar que a plataforma é espécie de embarcação, entretanto, a fiscalização assim não entendeu, pois concluiu que as plataformas utilizadas pela empresa, até se locomovem na água, mas não se destinam ao transporte de pessoas ou coisas.

Embora se admita o transporte como atividade principal na navegação de longo curso e na de cabotagem; há, de acordo com a Lei Nº 9432, de 1997[21] outras modalidades de navegação.

Caso se adote interpretação similar àquela do Conselho de Contribuintes, as embarcações de recreio e desporto, ou as de apoio marítimo seriam excluídas do conceito de embarcação, porquanto se destinam a outras atividades, que não o transporte de cargas e pessoas.

Tampouco as naus militares, cujo objetivo primeiro é o patrulhamento e, em caso de risco, o engajamento armado, seriam consideradas embarcações.

Para fundamentar a equivocada decisão, o Conselho de Contribuintes amparou-se na Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação de Decodificação de Mercadorias de 1983, do Conselho de Cooperação Aduaneira, internalizada no Brasil pelo Decreto 71/1988, de modo a sustentar, que toda plataforma – independentemente de suas especificidades – deva ser considerada, para fins de aplicação tributária, como unidade flutuante, e não embarcação. Ocorre que o referido diploma não define o conceito de embarcação, nem o de unidade flutuante.

A exemplo da citada Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação de Decodificação de Mercadorias, as normas tributárias nacionais são silentes quanto ao conceito de embarcação e de unidade flutuante.

Não se trata, portanto, como o argüido pela Fazenda Nacional, de aplicação de definição fiscal (teoria da independência da classificação tributária), mas de criação, ao alvedrio da lei, de conceito novo.

Em não havendo conceito fiscal próprio de embarcação e de plataforma, dever-se-ia, necessariamente, buscar as correspondentes classificações na legislação aplicável, no caso, a Lei Nº 9.537/97 e a Normam I. Frise-se, nesse caso, que como a autoridade da Marinha é exercida por delegação da União, em cumprimento de comando constitucional, não se poderia, sequer, instituir conceito próprio de embarcação em legislação fiscal, em dissonância com as normas específicas da Marinha.

Em relação ao tema, o Art. 110 do Código Tributário Nacional impõe:

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

Causa ainda maior estranheza o fato de o Conselho de Contribuintes ter desconsiderado as definições da doutrina especializada, nacional e estrangeira, e a extensa bibliografia de Direito Marítimo citada no Recurso Voluntário da PETROBRAS, para recorrer ao Aurélio e à Barsa, definindo, em prejuízo da recorrente, o termo embarcação.

Inobstante o merecido prestígio das publicações transcritas no Acórdão, trata-se de literatura atécnica, que dispõe o sentido usual dos vocábulos lá listados, sem especificar sua acepção jurídica.

Rechaçaram, também, os conselheiros a evocação de precedente do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. O precedente referia-se ao julgamento do Recurso Extraordinário N. 76.133, de 1974, em que se reformou decisão que autuava a Companhia Comércio e Navegação e a Petróleo Brasileiro SA – PETROBRAS pelo não recolhimento de tributo referente à construção de plataforma móvel de exploração petróleo.

Considerando que, já à época, o Decreto 61.514 de 1967 instituía isenção à aplicação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para embarcações, arguiram as recorrentes que plataforma marítima enquadrava-se na classificação de embarcação.

A Receita Federal sustentou, então, que a função de navegação era meramente acessória, e que a plataforma se destinava à exploração de petróleo, e não à navegação. Negou, contudo, a Corte Constitucional esta tese, amparada no fato de que a Marinha do Brasil havia classificado a plataforma, repetidas vezes, na categoria de embarcação (primeiro, quando da construção, enquadrou-a como casco[22], tal como qualquer outra embarcação a ser erigida; em seguida, finalizada a construção, definiu-a como embarcação).[23] Com extrema propriedade o Tribunal Constitucional entendeu que a competência para definir o enquadramento de dada estrutura como embarcação ou outra natureza marítima caberia tão somente à Marinha, tal como o previsto na Constituição de 1967[24] – e cuja norma se reproduziu na Constituição atual, promulgada em 1988.

Citemos in verbis a decisão dos ministros do STF:

Com efeito, os documentos de f. 46 e 47, ambos expedidos pelo Ministério da Marinha, constituem prova indiscutível de que a plataforma que se refere a esse processo é uma embarcação, tanto que ambos esses papeis contêm indicação de todos os dados técnicos que autorizam defini-la como tal.

Ora, se as autoridades competentes definiram como embarcação a discutida plataforma e se o fizeram em termos indiscutíveis (…) é certo o fato que está alegado, isto é, que se trata de embarcação.

O Conselho de Contribuintes, ao apreciar o Recurso Voluntário interposto pela PETROBRAS, afastou, todavia, o reconhecimento do referido precedente, afirmando, para tanto, que a decisão prolatada em 1974 não se coadunaria com o Decreto Legislativo N. 71, o qual institui a Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação de Decodificação de Mercadorias, de 1988.

Equivocaram-se, porém, os conselheiros ao inferir da decisão de 1974 conteúdo meramente tributário, quando a decisão do STF tratou, de fato, da reserva de competência administrativa, por meio da qual a União outorga à Marinha o poder regulamentar exclusivo de definir, segundo seus órgãos auxiliares, quais estruturas devem ser consideradas como embarcações, estando essas construções sujeitas a registro.

Nesse sentido, o Art. 142 da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, estabelece:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º – Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

Sendo a referida norma constitucional regulamentada pela Lei N. 97, de 1999 que, em seu Art. 17, dispõe:

Art. 17. Cabe à Marinha, como atribuições subsidiárias particulares:

I – orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional;

II – prover a segurança da navegação aquaviária;

III – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar;

IV – implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas.

V – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução.

Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Marinha o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como Autoridade Marítima, para esse fim.”

Resta evidente que em face da omissão da legislação tributária, uma vez que não consta das normas fiscais brasileiras qualquer definição do conceito de embarcação ou de plataforma, limitando-se a normativa citada no Acórdão (Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação de Decodificação de Mercadorias, do Conselho de Cooperação Aduaneira) a admitir a existência de duas classificações distintas (i) embarcação; e (ii) unidades flutuantes, sem, contudo, distingui-las ou mesmo defini-las, deveria a Autoridade Fiscal aplicar as normas que, de fato, precisam o conceito de embarcação (Lei Nº 9.537/1997 e Normam I).

Ao contrário, recorreu o Conselho de Contribuintes, de forma despropositada, à tese do real work, aplicada, frise-se, para outra finalidade no Direito Inglês, bem como às definições transcritas na Barsa e no Aurélio.

Não pode prosperar, na instância judicial, o despropósito que se confirmou na esfera administrativa. Com efeito, a 24ª Vara Federal do Rio de Janeiro decidiu, recentemente, pela inexistência do prolatado crédito fiscal, desonerando a PETROBRAS do correspondente pagamento.[25]

VI. CONCLUSão

O conceito de embarcação, tal como o admitido pela legislação brasileira, é amplo o suficiente para que nele se incluam as plataformas marítimas. Inúmeros são os exemplos de equiparação, no Brasil e no exterior, de plataforma – independentemente de sua natureza fixa ou móvel – à embarcação.

Fato é que, no caso de dúvida na aplicação destes conceitos, deve-se recorrer à autoridade competente – no caso, a Marinha – para que esta, no exercício de suas atribuições legais – defina concretamente se dada estrutura deva ou não ser considerada como embarcação.

Não se pode, em qualquer instância, querer se imiscuir em campo especializado do Direito, usurpando-se poder-dever outorgado pelo legislador à Autoridade Marítima.

Autor: Camila Mendes Vianna Cardoso

Advogada e Sócia do Law Offices Carl Kincaid/Mendes Vianna Advogados Associados. LL.M. em Direito Marítimo pela London School of Economics, Especialista no Atenfimento da Indústria Naval, de Infraestrutura, Portuária e de Petróleo e Gás, Menbro da Associação de Direito Marítimo das Câmaras de Comércio Brasil e Noruega, Brasil-França, Brasil-Alemanha e Brasil-Estados Unidos e da OAB/RJ.

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