
A Convenção internacional para a reciclagem segura e ambientalmente adequada de navios (Hong Kong Convention) entrará em vigor em junho de 2025. A internalização da HKC é objeto de avaliação de um grupo técnico estabelecido em setembro de 2023 pela Comissão Coordenadora para os Assuntos da Organização Marítima Internacional (CCA-IMO), que identificou uma oportunidade significativa de os estaleiros nacionais expandirem suas operações e ingressarem neste segmento, inclusive quanto à demanda estrangeira. O grupo notou um impulso para a economia circular, para a redução das emissões dos gases de efeito estufa (GEE) e convergência com os desafios para a retomada do setor naval no país.
O GT apontou que a atividade abre espaço para que embarcações estrangeiras sejam desmanteladas em estaleiros no Brasil, podendo ser necessárias adaptações na Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), em especial num dispositivo que proíbe a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como de resíduos sólidos cujas características possam causar diferentes tipos de danos ao meio ambiente.
A análise do grupo classificou como primordial a preservação da saúde humana, do meio ambiente e a segurança do trabalho, com foco na prevenção de práticas perigosas e não sustentáveis. O assessor da CCA-IMO, comandante Flávio Mathuiy, diz que, além da avaliação da pertinência da internalização da Convenção de Hong Kong, o grupo recebeu a tarefa para verificar se havia algum descompasso da Convenção com o Projeto de Lei (PL) 1.584/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados.
Entre as emendas propostas ao PL para adequação à HKC está uma nas exceções à aplicabilidade da lei, substituindo a expressão ‘embarcações da Marinha do Brasil’ por ‘quaisquer navios de guerra, navios auxiliares ou a outros navios utilizados, temporariamente, apenas em serviço governamental não comercial, independente de suas bandeiras’, de modo a adequar aos termos geralmente utilizados nos tratados.
Outra proposição é que o inventário de materiais perigosos seja mantido e atualizado ‘até a reciclagem da embarcação’, e não apenas ‘durante toda a vida útil’, como consta no texto original. “Poderia haver um gap grande entre vida útil até a reciclagem”, explicou Mathuiy, em maio, durante workshop sobre descomissionamento e desmantelamento de embarcações, promovido pela Sociedade Brasileira de Engenharia Naval (Sobena), no Rio de Janeiro.
Também foi apresentada uma proposta de emenda que amplia, de menores de 300 AB (arqueação bruta) para menores de 500 AB, o perfil das embarcações com direito a isenção. No artigo do PL1.584/2021 que estabelece que a autoridade marítima poderá autuar o responsável pela embarcação ‘maior que 300 AB’ que não tiver seguro de risco para abandono, com previsão de multa, no valor entre R$ 5 mil e R$ 5 milhões, foi proposta emenda alterando a arqueação bruta de embarcações para ‘maior ou igual a 500 AB’ e, em vez de citar os valores limites das multas, fazer referência a Lei 9.537/1997 (LESTA), que rege a segurança da navegação, incluindo multas.
Um outro ajuste sugerido trata da troca o termo ‘terminais offshore’ por ‘terminais’ em parágrafos que tratam de embarcações estrangeiras que podem ser objeto de aviso, detenção, expulsão ou banimento de portos ou terminais portuários, em casos de ausência de inventário ou certificado para reciclagem, bem como declaração de conformidade e inventário de materiais perigosos. Essa sugestão de alteração visa permitir que os navios de bandeira estrangeiras que trafegam nas bacias hidrográficas dos rios Amazonas e Paraguai também sejam alcançados.
Há uma preocupação também de excluir um parágrafo do artigo 7, que prevê que qualquer embarcação com AB maior ou igual a 100, fundeada ou atracada em um porto, que deixar de atender aos requisitos mínimos de segurança para navegar, permanecendo mais do que cinco anos na mesma área geográfica, seja submetida à inspeção da autoridade marítima para voltar a navegar. Esse dispositivo também prevê que, caso constatado o fim da vida útil, a embarcação deve ser encaminhada à reciclagem, sob pena de apreensão pela autoridade marítima, conforme previsto na LESTA.
O comandante Mathuiy explica que esse tema é bastante complexo para ser tratado em um único parágrafo, sem abordar questões importantes, tais como definição das autoridades responsáveis por fase do processo, situações que resultem em leilões desertos para a compra dessas embarcações, embarcações com pendências judiciais e estabelecimento de fontes de recursos, por exemplo.
Pela forma como está escrito e pela falta de regulamentação do tema, pode dar a impressão equivocada de que a Marinha seria a responsável para dar destino à reciclagem a todas as embarcações abandonadas em território nacional, o que poderia gerar um ônus muito grande para a instituição, tanto de recursos humanos, engenheiros navais e advogados, quanto de recursos financeiros, custo de reboque e contratação de estaleiros para reciclagem.
Mathuiy comentou que a lei estadual do Rio de Janeiro [10.028/2023, de autoria da deputada estadual Célia Jordão (PL-RJ)] também aborda essa questão dos navios abandonados. E na proposta original constava a criação de um fundo específico para custear o processo de perdimento e reciclagem dessas embarcações, demonstrando a preocupação do legislador em prover meios para a autoridade competente cumprir com a tarefa imposta, mas a criação do fundo foi vetada.
Ronald Carreteiro, diretor da Sobena, acredita que existem fatores favoráveis que abrem uma porta gigantesca para estaleiros brasileiros. Ele destaca a inclusão no mercado dos desafios e das boas práticas da atividade de desmantelamento sustentável. Carreteiro também cita a aplicação da regulação pelo PL 1.584/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados, e o uso universal da Convenção de Hong Kong, a partir de junho de 2025, além dos investimentos das operadoras de petróleo em descomissionamento e desmantelamento sustentável.
O engenheiro considera que a indústria de construção naval no Brasil tem uma história rica e enfrenta desafios significativos. “Com a modernidade e o avanço das tecnologias, o mind set vem se alterando para que o estaleiro seja uma estação de negócios multifuncionais. A adaptação às novas realidades e a implementação de uma nova visão estratégica são essenciais para o futuro da indústria naval brasileira”, avalia Carreteiro, que é conselheiro do Cluster Naval e membro do GT de descomissionamento e desmantelamento sustentável da Comissão Estadual de Desenvolvimento da Economia do Mar (Cedemar), do Rio de Janeiro.
A Petrobras avalia que o mercado reagiu bem ao modelo de venda de plataformas para desmantelamento adotado para a P-32 e P-33, arrematadas pela Gerdau no ano passado e que passarão pelo processo no Estaleiro Rio Grande (RS). O engenheiro da área de descomissionamento offshore da Petrobras, Eduardo Stein, conta que, nesses dois processos de alienação, um dos desafios foi a exigência de estaleiro no Brasil e a disponibilidade de dique seco.
As duas plataformas possuem dimensões semelhantes, sendo que o casco da P-32 tem 330 metros de comprimento por 54 metros de boca e pesa aproximadamente 45 mil toneladas, enquanto a P-33 pesa em torno de 41 mil toneladas. A expectativa é que a maior parte deste aço a ser retirada das unidades seja usado como matéria-prima para produzir esse insumo novamente. “Felizmente, o mercado respondeu muito bem e enxergamos que existe um interesse grande na última ponta, siderúrgica, que vai absorver essas 45 mil toneladas”, disse Stein, em maio, durante o workshop.
A Gerdau arrematou as duas plataformas, em parceria com a Ecovix, proprietária do Estaleiro Rio Grande, onde os serviços começaram a ser executados. Atualmente, a P-32 está no dique seco no ERG e a P-33 aguarda o processo ser finalizado, acostada no Porto do Açu (RJ). A Petrobras tem contrato com o Porto do Açu para receber três plataformas, inclusive a P-33. “Esperamos que ainda esse ano, ou até o início do ano que vem, as outras duas ocupem vagas no ‘estacionamento’ qualificado no Porto do Açu”, projeta Stein.
O atual plano de negócios da Petrobras (2024-2028) prevê investimentos da ordem de US$ 11 bilhões no descomissionamento de 23 plataformas, sendo 14 flutuantes e nove fixas. O planejamento prevê também o descomissionamento de 1,9 mil quilômetros de linhas flexíveis e 550 poços. Após 2028, a previsão é que mais 40 unidades de produção sejam descomissionadas pela Petrobras (35 fixas e cinco flutuantes).
O Estaleiro Inhaúma (RJ), sem atividades ligadas à construção e ao reparo naval desde 2016, enfrenta uma série de problemas que impedem sua retomada e uma eventual utilização para serviços de desmantelamento de embarcações. Localizado no bairro do Caju, na zona portuária da capital fluminense, o empreendimento possui área de 321.612 metros quadrados e dois diques, o que em tese seria uma vantagem para disputa por serviços de reciclagem de embarcações. Em contrapartida, precisa de manutenção e de uma empresa ou grupo interessado em assumir a operação do empreendimento.
O estaleiro conta com um dique considerado um dos maiores da América Latina e outro que eventualmente pode ser utilizado para serviços de reparo. O dique 1 tem 160 metros de comprimento por 25 metros de largura e o dique 2 tem 350 metros por 25 metros. O empreendimento pertence à Companhia Brasileira de Diques (CBD), que arrendou o estaleiro à Petrobras até 2031, com possibilidade de renovação por mais 10 anos.
Stein frisa que o estaleiro arrendado não é propriedade da Petrobras, o que não significa que a instalação não possa ser avaliada para desmantelamento de plataformas. Ele diz que, no trajeto das plataformas até o Inhaúma, existem restrições de calado aéreo por conta da Ponte Rio-Niterói, porém quase todos os modelos de unidades em operação em águas jurisdicionais brasileiras podem ser levados até o estaleiro.
O engenheiro da área de descomissionamento offshore da Petrobras acrescenta que a Petrobras fez várias análises da viabilidade, a fim de verificar a possibilidade e as dificuldades adicionais, na medida em que a companhia não opera estaleiros e teria que contratar um operador, bem como a manutenção do empreendimento, ocioso há quase 10 anos. “Existem vários impeditivos, mas é um ativo interessante que precisamos estudar internamente e trabalhar a viabilidade de usar”, comenta Stein.
Nos últimos dois anos, a Petrobras chegou a abrir licitações na tentativa de sublocar o Estaleiro Inhaúma. Em 2023, potenciais interessados identificaram risco jurídico para investimentos e relataram que a ociosidade e falta de manutenção nos últimos anos prejudicaram as instalações do estaleiro, desde as oficinas até os diques, principal e auxiliar, importantes para atividades de construção e reparo naval. Segundo fontes que estiveram nas instalações naquele período, equipamentos como a casa de bombas e o porta-batel apresentavam necessidade de manutenção.
O professor de engenharia industrial metalúrgica na Universidade Federal Fluminense (UFF), Newton Pereira, percebe que alguns países que ratificaram a HKC ainda praticam o método de reciclagem nas praias, o que oferece riscos ambientais. Ele defende que o Brasil garanta a segurança jurídica, assim como fizeram os países europeus, como a Noruega, que foi o primeiro país a ratificar a convenção em 2013.
Pereira avalia que ratificar a HKC pode ser um risco para o Brasil antes do PL 1.584/2021, pois acredita que o país deve ter um regulamento nacional para ordenar a atividade. Ele destaca que é possível reciclar com segurança utilizando métodos como rampa e alongside, que são utilizados por diversos países, de forma combinada e segura.
O professor observa que existem países que já ratificaram a HKC, mas não estão na lista porque não atendem aos requisitos do regulamento europeu. “A partir de 2019, tivemos um alto índice de países que ratificaram a HKC, mas o regulamento europeu figura a partir de 2018. Precisamos que o PL seja aprovado para dar a segurança jurídica para que não tenhamos problemas”, analisa Pereira, que é coordenador do Centro de Estudos Para Sistemas Sustentáveis da Universidade Federal Fluminense (CESS/UFF).
Em visitas recentes a estaleiros de reciclagem na Europa, Pereira constatou a preocupação de integração da reciclagem de navios dentro do ambiente portuário, como também em retirar um estigma de que é uma atividade suja. Ele diz que países como Espanha e Portugal lutaram para provar que a reciclagem poderia ser feita de maneira segura.
O professor pondera que, diferente do Brasil, alguns desses estaleiros foram projetados e pensados para a reciclagem de navios, e não para construção. Ele relata que esses empreendimentos contam com rampa impermeável, sistema de drenagem de materiais perigosos ou efluentes, além de áreas de armazenamento de resíduos oleosos retirados das embarcações e tanques adicionais para tratar e destinar resíduos.
A indústria colocou novos desafios que vão gerar uma nova demanda a estaleiros para identificar materiais perigosos. O registro e o termo de conformidade também terão que identificar a localização desses materiais e a massa contida neles. Para navios novos, haverá necessidade de os fornecedores declararem os componentes dos equipamentos a bordo dos navios. Segundo Pereira, essas informações devem ser pensadas desde o estágio do projeto de construção.
Para o professor, é possível melhorar a gestão dos ativos a bordo dos navios para o processo da reciclagem e o Brasil pode contribuir para uma gestão mais eficiente baseada em IoT (Internet das Coisas). Ele destaca que existem grupos acadêmicos trabalhando nesses projetos, com pesquisadores de várias áreas e que a iniciativa está ganhando corpo no cenário nacional.
“Temos que reverter essa indústria que, aparentemente, parece suja. Vamos usar [o termo] reciclagem, é tecnologia que precisamos colocar aqui”, sugere. Pereira observa uma questão a ser resolvida a nível nacional e internacionalmente é como rastrear materiais ao longo de um canal reverso. Ele observa tecnologias de identificação por rádio frequência (RFID) já disponíveis que podem ser utilizadas para inventário.
O professor entende que é possível utilizar tecnologia RFID como passaporte digital para reciclagem de navios. “É possível gerarmos inventários de materiais perigosos e ativos dos navios que permitem processo de reciclagem mais seguro”, projetou. Segundo Pereira, gerar um inventário digital dos ativos do navio permite um processo de reciclagem mais seguro e transparente para os armadores, estaleiros, recicladores e partes interessadas.
O RFID pode ajudar partes interessadas, desde fabricantes a recicladores, com dados detalhados em tempo real, transparência aprimorada, eficiência e rastreabilidade. “Vemos que o RFID, um canal para ter o passaporte implementado, está sendo trazido para dentro da indústria marítima. É importante porque já se aplica esse tipo de tecnologia em inventários diversos da indústria, mas não temos utilização em grande escala na nossa indústria”, destacou Pereira.
O navio escola Ciências do Mar III da Universidade Federal Fluminense (UFF) é um campo de pesquisa com etiquetas RFID, mapeamento disponível na internet e gestão do inventário a bordo da embarcação. “Nosso setor tem que inovar, é uma gestão mais eficiente nesse processo dar rastreabilidade ao longo da cadeia”, afirma. Pereira diz que essa tecnologia pode ser utilizada, inclusive, em plataformas e navios-tanque, pois não há risco de explosão em unidade com atmosfera perigosa.
Carreteiro, da Sobena, defende que a integração da Academia, inovação e políticas públicas podem impulsionar a competitividade e sustentabilidade do setor. “É chegado o momento de se utilizar a gestão do conhecimento, a Academia, a inteligência artificial, as tecnologias da modernidade, a logística, as inovações, e as startups, através de uma ‘Universidade Corporativa da Indústria Naval’, para se repensar o futuro, face a infraestrutura multifacetada do segmento”, sugere o engenheiro.
Fonte: Revista Portos e Navios