Na década de 30, no Rio de Janeiro, os bondes dominam as ruas, chapéus fazem a cabeça da população, Getúlio Vargas governa o país do Palácio do Catete e o comércio exterior brasileiro se baseia ainda na indústria do café. Neste cenário foi fundado o escritório Law Offices Carl Kincaid, atual Kincaid – Mendes Vianna Advogados. Em 1932, o advogado norte-americano Carl Kincaid desbravou o país ainda em formação e investiu na implantação de um escritório para atender às empresas estrangeiras que, na época, iniciavam seus investimentos no Brasil. Uma ideia para lá de visionária. Oito décadas, muitos clientes e várias gerações de advogados depois, a empresa celebra o 80° aniversário como referência em direito marítimo e em outras áreas. Em entrevista exclusiva à revista InterMarket, os irmãos Godofredo Mendes Vianna e Camila Mendes Vianna Cardoso falam de sua experiência de mais de 20 anos no escritório, contam um pouco da história do Kincaid, ressaltam o pioneirismo e a tradição da firma e analisam o cenário econômico atual. Filhos do advogado Dr. Antonio Carlos Mendes Vianna que ingressou no escritório nos anos 60, eles explicam como a renovação constante do escritório, a internacionalização, a profissionalização da equipe e a diversificação das áreas de atuação contribuíram para a longevidade da firma. Intermarket – Que balanço vocês fazem destes oitenta anos de atividade do escritório e o que vocês destacariam desta trajetória de oito décadas? Camila Mendes Vianna Cardoso – Por conta do aniversário, fizemos uma análise do Rio de Janeiro há oitenta anos. Não existia o bondinho do Pão de Açúcar, o voto feminino e as exportações eram basicamente de café. Era o Rio de Janeiro a capital de um Brasil completamente diferente. Desde então, as mulheres passaram a atuar política e no mercado de trabalho, com uma intensa transformação da sociedade brasileira. Durante todo esse período, o escritório conseguiu se manter atuante e defender o interesse dos clientes, pautando-se pela observância de princípios básicos de confiança e lealdade. Há sempre momentos mais difíceis, momentos melhores, a economia passa por altos e baixos mas o importante é a firma permanecer sempre atuante. Por isso, sentimos muito orgulho de conseguir carregar um nome durante oitenta anos.IM – O escritório, de certa forma, foi pioneiro em direito marítimo. Como foi o início das atividades em uma época na qual o Brasil engatinhava nas questões comerciais? Godofredo Mendes Vianna – O escritório foi fundado pelo Carl Kincaid, que tinha um escritório de grande porte em Houston, nos Estados Unidos. Ele era um visionário. Imagine naquela época montar um escritório para atender clientes no Brasil? Dependia-se do transporte a vapor, a aviação comercial ainda estava começando. Ele se associou a um brasileiro, Dr. Antonio de Pádua Martins Brito, e a sintonia desde então foi perfeita. Carl Kincaid trazia os clientes estrangeiros e o Dr. Brito montou toda a estrutura necessária para atender a essa demanda. Foi quando as multinacionais começaram a se instalar no Brasil, começaram as obras de infraestrutura, de energia e muitas outras. É curioso ver que o Kincaid Mendes Vianna Advogados teve várias fases. Teve a fase do pioneirismo e do ineditismo, pois não existiam escritórios com esse perfil. E, na época, o Rio era a capital federal e o centro jurídico do país. Depois dessa geração – após o falecimento do Kincaid em 1958 – entrou uma nova geração de jovens advogados atuando conjuntamente ao Dr. Brito. Foi quando entrou nosso pai, Dr. Antonio Carlos Mendes Vianna, e o João Batista Louzada Câmara, além de diversos outros advogados que os sucederam e formaram essa escola. Cada um se dirigiu para sua área de especialização, tais como societária, trabalhista, bancária, contencioso e, assim, montaram uma equipe que perdurou por muitos e muitos anos.IM – Esse entrosamento e essa renovação foram fundamentais para o sucesso do escritório? Camila – Meu pai, filho de embaixador e falando várias línguas, entrou no escritório em 1960, ainda jovem, e foi trabalhar com o Dr Brito, que não teve filhos. De certa forma, os advogados novos foram como filhos do Dr. Brito. Ele ensinava tudo, dava todo o apoio, e era uma pessoa muito generosa. Meu pai trabalhou a vida inteira aqui até falecer em 2004. Eu ingressei em 1990 depois de ter estudado Maritime Law em Londres e estagiado anos em outros escritório, como o Baker? O Godofredo entrou um pouco antes, em 1987. Godofredo – A partir de certo momento, havia duas bancas fortes dentro do Kincaid: direito marítimo, com sua característica internacional, e o direito trabalhista, com sua característica precípua nacional. Junto com o crescimento do setor naval no final da década de 80, as atividades do escritório se expandiram para atender a crescente demanda dos clientes. Em 1997 surge a Lei de Incentivo Naval, voltam as encomendas da Petrobras. Nesse momento, o escritório, muito bem posicionado na área marítima, criada e desenvolvida por meu pai, e que já vinha advogando para vários armadores, encontrou-se em uma posição bastante estratégica. Foi quando sentimos a necessidade de melhorar nossa estrutura, de internacionalizar mais a equipe e de focar na formação dos nossos profissionais. IM – E muita coisa mudou desde então… Camila – Junto com a indústria do petróleo acompanhamos o crescimento do Rio de Janeiro. Há vinte anos, lembro-me que vários colegas precisavam mudar para São Paulo porque havia dificuldade para conseguir emprego aqui no Estado. Especialmente na área bancária, de fusões e aquisições, ambos bem concentrados em São Paulo. É interessante ver essa mudança. Hoje, já tem um mercado de trabalho pujante no Rio de Janeiro. As indústrias navais e de petróleo foram muito importantes, abriram novas perspectivas para o desenvolvimento do nosso Estado. Godofredo – Nosso escritório se reinventou várias vezes acompanhando a indústria da navegação. Quando ingressei aqui, em 1987, o escritório era muito ativo no contencioso marítimo, pois pegamos a era pré-contêiner. As avarias da carga e outros incidentes marítimos eram o dia a dia do advogado maritimista. Os armadores sendo demandados por importadores devido a alta uantidade de carga avariada no porto. Muito granel, muita quebra, o valor dos seguros eram altíssimos. Com o crescimento do transporte de cargas através do uso do contêiner o mercado foi se adequando e mudou o perfil do contencioso marítimo. Com isso, sentimos necessidade de atender também aos projetos, aos investimentos dos armadores, dar consultoria ao Fundo de Marinha Mercante. Inovamos ao atender na parte preventiva e consultiva do risco destes clientes,o que é uma vocação do Kincaid. Nós já tínhamos essa cultura de inovação e, por isso tudo, hoje somos um escritório de oitenta anos bastante jovem.IM – Comércio exterior batendo recordes movimentando uma cadeia que estava morta e indústria naval ressurgindo. Como o escritório acompanhou justamente esse desenvolvimento do mercado? Camila – Nós acompanhamos o mercado em geral. Hoje, o grande desafio é a qualidade da mão de obra, ter profissionais bem qualificados, que sejam capazes de preparar os pareceres e esponder as consultas rapidamente mas sem perder a qualidade. Tudo reflexo do desenvolvimento tecnológico, onde o cliente manda um e-mail de outra parte do mundo e necessita uma resposta imediata. São demandas constantes e sempre muito urgentes. Até porque a área marítima tem essa característica. Não dá para esperar, o navio não pode ficar parado o valor do afretamento é muito alto e os riscos da operação são sempre elevados. Por isso, não podemos ter advogados inexperientes. O grande desafio foi formar uma equipe e a manter sempre atualizada, retendo os melhores profissionais. Eu acredito que ter uma equipe competente e comprometida é nossa meta e acredito que seja a filosofia de qualquer empresa que queira ser bem sucedida. Godofredo – Aprendemos muito com o passado. Quando percebemos que o escritório tinha uma estrutura com característica condominial, os advogados tinham cada um sua advocacia, sua área de atuação. Faltava conexão. Fizemos todo o trabalho de integração e hoje temos uma hierarquia e um plano de carreira. Investimos muito em treinamento no Brasil e no exterior e na prática de gestão em advocacia. IM – Foi feito, então, um trabalho forte de gestão? Camila – A gestão de escritório também foi uma mudança dentro da advocacia. Antigamente o advogado era como o médico, não se preocupava com a gestão de equipe. Era uma advocacia mais personalista. Hoje, a administração é muito importante. É fundamental ter um bom gerenciamento de recursos e pessoas para não perder o foco, para que se invista toda a energia para conseguir o sucesso do que pretende. Grandes escritórios brasileiros e internacionais têm investido em gerenciamento Não se pode ter uma firma e não saber quanto se gasta, o quanto se pretende investir, aonde se deseja chegar… Planejamento me parece fundamental. O Brasil está muito caro hoje em dia e a temos um desafio de conseguir reduzir o custo fixo. Os empresários brasileiros hoje tem esse desafio que é conseguir ficar competitivo internacionalmente em qualquer negócio onde atue.IM – O Kincaid Mendes Vianna Advogados também apostou na diversificação. O escritório passou a atuar em áreas como infraestrutura e meio ambiente, além de energia, petróleo e gás. Isso foi fundamental para a empresa chegar aos oitenta anos? Godofredo – A diversificação que nós adotamos foi uma demanda natural dos clientes. De puramente navegação, passamos a conhecer o coração do negócio dos clientes. A partir disso, mudou o enfoque do escritório. Passamos a ser mais preventivos e consultivos, atuando na gestão desses investimentos que chegavam ao Brasil. Assim, tivemos a necessidade de entrar naquilo que é fundamental: a parte tributária e societária, que são essenciais, a área de meio ambiente, que é um desafio para qualquer projeto, a parte de infraestrutura. E a infraestrutura veio agregada à logística do transporte, que passa pela área portuária. E nos portos brasileiros temos diversos gargalos. Vivemos isso de perto: da Lei dos Portos até a discussão atual sobre terminais privados e públicos. IM – Portos são sempre um assunto complicado… Godofredo – O Brasil precisa melhorar muito. Não conseguimos escoar a nossa produção, na velocidade que precisamos para atender ao nosso crescimento. Camila – Isso impacta nosso crescimento. A falta de logística e a ausência de melhor infraestrutura, desde aeroportos mais eficientes até portos mais ágeis, emperra o crescimento do país. Vejo no governo um esforço para encontrar uma solução, mas o desafio não é fácil. Inclusive, participamos de estudos para clientes para fazer um diagnóstico de todos esses problemas que existem no setor portuário e também na construção de estaleiros e fábricas no Brasil. Qualquer novo empreendimento enfrenta uma burocracia enorme, são muitas as licenças e diversos órgãos anuentes envolvidos e a legislação tributária não é clara. A guerra de ICMS entre os estados é um exemplo que atrapalha muito na previsão do quanto vai se gastar no projeto. Não é muito claro se você vai conseguir uma licença ambiental em três meses ou em três anos, se vai pagar “X” ou “Y” de tributos. Isso tudo acaba gerando um custo agregado nos projetos brasileiros. Godofredo – A grande demanda no setor é por uma clareza e certeza em relação aos marcos regulatórios, em relação à tributação, a licenciamentos, entre outros assuntos. Os estrangeiros que chegam aqui com seus ativos se deparam com alguns custos que não são aparentes, que estão ocultos e que só surgem quando eles já estão aqui com os contratos em curso. Com nossa longa experiência conseguimos antever alguns problemas que o cliente pode enfrentar para que ele tenha uma noção e possa precificar o serviço de uma maneira segura. Esse é o grande desafio para qualquer operador: dimensionar o risco. IM – Por isso a internacionalização que vocês buscam é fundamental para lidar com essa complexidade? Godofredo – É preciso saber como o cliente estrangeiro pensa. Como ele se comunica, como está acostumado a enquadrar os projetos. Temos de fazer a mesma leitura que ele faz. Mas não é só isso. O cliente estrangeiro, principalmente o anglo-saxão, tem outra maneira de se comunicar. Ele é muito mais objetivo. Quanto mais os advogados tiverem essa visão, melhor. Camila – Além disso, hoje estamos em um mundo globalizado. Como o Brasil tem uma distância física da Europa e da Ásia, havia uma dificuldade de integrar esta globalização. Mas, com o advento dos meios de comunicação em geral, essas distâncias diminuíram consideravelmente e temos que estar preparados para essas evoluções. E a área naval é, por si só, internacional, já que 90% das exportações são por via marítima no Brasil. Quanto mais internacional o Brasil se tornar, mais acessível e claras forem as regras, menor será o custo e benefícios para o próprio País. IM – Vivemos um frenesi do setor offshore, com o advento do pré-sal. Como vocês vislumbram o escritório dentro dessa área do mercado? Godofredo – O crescimento do setor não tem volta. Até a Petrobras já ajustou seus planos de negócios. Há três, quatro anos atrás havia uma euforia muito grande no número de encomendas e hoje estamos em um patamar mais realista. Isso é bom para o mercado, uma dose de realismo dentro do programa. No âmbito do escritório, já sentimos esse efeito: estaleiros construídos para as sondas de perfuração, investimentos enormes, já estão em atuação e os advogados da área de offshore vão ter muita demanda e precisam estar preparados. Uma coisa é a fase pré-operacioanal, outra é a fase operacional, quando começa a construir, tem a cadeia de subcontratados, as importações, mão de obra que vem e vai, transferência de know how. Agora, quem vai dosar o ritmo são as grandes empresas. Uma coisa interessante é que, embora a Petrobras continue a líder e única reguladora do pré-sal, vários clientes nossos já não dependem apenas da Petrobras. As demais petroleiras também são muito importantes para nossos clientes. Isso pulveriza o risco e traz mais um atrativo para o Brasil. Camila – O Brasil tem o desafio de conseguir que toda essa riqueza do pré-sal retorne para a população e que gere uma melhoria geral em educação e saúde. Todo mundo sabe que o petróleo pode ser muito bom para um país, mas também pode ser ruim caso os recursos não sejam bem aplicados. O Brasil pode seguir um exemplo como o da Noruega que conseguiu desenvolver a parte social sem abrir mão da parte econômica. Além disso, a questão do conteúdo nacional é um desafio para a indústria, pois há várias dificuldades para cumpri-lo principalmente na questão da qualificação da mão de obra. O desafio de aumentar o conteúdo nacional é importante, mas devemos agir dentro de uma perspectiva realista, de acordo com o que o mercado permite. Os investimentos em formação, qualificação e educação têm de ser prioridade. Não tem como ter crescimento sem um forte desenvolvimento da educação. IM – Dentre tantas áreas de atuação do escritório, qual a mais espinhosa e complexa de se tratar? Godofredo – São ciclos. Nós vivemos há uns dois anos a situação de incerteza muito séria com o REPETRO. Os barcos não eram desembaraçados, havia divergências de interpretação da lei e isso trouxe bastante prejuízo para vários armadores. Na parte de estrutura, o licenciamento ambiental é uma situação já bem mais complicada, que passa pela própria questão da competência: se do órgão estadual, órgão municipal… Camila – Os próprios órgãos não têm efetivo suficiente para atender rapidamente a forte demanda que há no Brasil. A parte tributária também é complexa. Temos tributos na esfera estadual, municipal, federal, e há vários questionamentos na justiça sobre todos eles. Tal incerteza acaba gerando dúvidas se o imposto deve ou não ser incluído no preço do produto ou serviço. É importante que as empresas consigam fazer um plano de negócios correto tanto em termos de custo como de prazo. Neste momento é que atuamos tentando ajuda-los. IM – É uma rotina complexa então… Godofredo – O que é estimulante é já ter participado como advogado para contribuir para o aumento dos negócios e a concretização de projetos reais. Uma pequena contribuição para nosso comércio exterior, para nossa indústria de navegação, dando alguma segurança para os investidores. É o que mantém essa paixão da advocacia acesa. Estou ligado há projetos reais e concretos, ajudando as empresas a realizarem seus objetivos e interagindo entre Governo, Judiciário e iniciativa privada, ver a democracia funcionando. O escritório se manteve atuante e atravessou duas ditaduras, várias fases políticas do país e diversas moedas e planos econômicos até agora. Camila – E é emocionante ver alguns advogados que trabalharam a vida inteira aqui. São várias gerações trabalhando para o escritório ser reconhecido. Sentimos uma responsabilidade por essa continuidade. Não estamos aqui de uma forma individualista, é mais que isso. Queremos que o escritório continue. Lembro do meu pai fazendo comentários à Lei dos Portos para os clientes Quando se vê um país como o nosso crescendo, descobrindo recursos, sentimos muito orgulho, o mesmo ocorre nos batizados dos navios. É a economia real. É muito suor e trabalho por trás de cada navio que se constrói no Brasil. IM – E quais as perspectivas para os próximos oitenta anos? Camila – Nos mantermos atualizados, com a mente aberta para as oportunidades que o mercado traz e estudar bastante para ter conteúdo e base para reflexão e análise. Educação é fundamental. Quem tem conhecimento o carrega consigo Espero que possamos transmitir para as futuras gerações essa dedicação que temos pelo escritório. É importante que as pessoas se sintam parte do escritório, fazendo a diferença no dia a dia. Todos os funcionários aqui são muito dedicados e isso faz a diferença para a firma. Temos funcionários com 35 anos de escritório e sentimos orgulho disso. Godofredo – Aliás, a celebração dos oitenta anos é uma forma de lembrar que não foi à toa que chegamos aqui. Temos muito rigor ético, muito cuidado, muita cautela, pois tratamos de interesses de terceiros junto a autoridades. Desde a formação do estagiário enfatizamos nossa preocupação com a ética e com os interesses dos clientes