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Na Mídia - 19/04/24

Direito Marítimo em foco no caso MV DALI: Avaria grossa – Uma visão histórica da evolução do instituto. Por Isabella R. de B. Fernandes, Marcelo E. Muniz e Rodrigo B. Dalhe

Em março de 2024, houve uma colisão entre o navio porta-contêineres “DALI” e uma ponte em Baltimore. Isso resultou no colapso da ponte, no bloqueio da entrada e saída do porto, causando também danos significativos ao navio e à carga. Devido à complexidade do acidente e as inúmeras medidas adicionais de esforços para mitigação do dano, isto é, os sacrifícios adicionais feitos para salvaguardar o restante da carga e da viagem, é altamente provável que seja declarada avaria grossa. Isso significa que todas as partes envolvidas na viagem marítima podem vir a ter que participar do rateio das perdas suportadas pelo armador/afretador. Em razão da importância do tema, será feito adiante um estudo sobre o instituto e a sua evolução no tempo. 

Historicamente, o instituto da avaria grossa remonta por volta de 800 a.C, tendo como base a Lei Rhodian. Contudo, seu primeiro instrumento legal escrito regulamentando o referido instituto só veio a ser criado séculos depois, através da Seção II de “De Lege Rhodia de Jactu” da Digesta, Livro XIV, datado de 533 d.C. Com a criação deste documento, foi possível identificar o princípio que se refere diretamente com a regra geral de avaria, o chamado alijamento de carga. 

Esta regra passou a ser implementada pelo Direito Romano de forma única a partir do povoamento de Rhodes na bacia do Mediterrâneo Oriental e, com o declínio do Império Romano, os regulamentos que regem a avaria grossa foram implementados pelo common law da área marítima. 

Desde o século XI, o acervo mais importante relacionado a avaria grossa eram os Rôles d’Oléron, regras estas que foram baseadas nos costumes marítimos. Há três artigos que regem a avaria nesta regra, quais sejam, os artigos 08, 09 e 35. O artigo 08, faz referência aos componentes da avaria grossa para alijamento de carga; o artigo 09 relaciona-se ao corte dos mastros, cabo de amarração e âncora; enquanto o artigo 35 aborda o ajuste da avaria grossa para o alijamento de carga entre os comerciantes. 

É crucial ressaltar que o instituto da avaria grossa teve origem na necessidade de descartar parte da carga no mar, seja para salvaguardar a segurança da embarcação em si, para proteger outra parte da carga ou até mesmo os tripulantes a bordo. 

Durante muitos séculos, as regras dessa instituição foram fundamentadas nos sacrifícios envolvendo o descarte (alijamento) da carga e o corte de mastros. À medida que o comércio e as atividades marítimas evoluíam e se interligavam, novas regras foram sendo incorporadas ao instituto. 

A partir da década de 1270, havia o Farmannalog, que era uma consolidação da Lei Nórdica do Mar. Já no norte da Europa, prevaleciam as Leis de Visby. Na Islândia, a Lei de Garagos continha disposições relacionadas à avaria grossa. No entanto, o Consulado del Mare foi aquele que codificou o common law dos marítimos no Mediterrâneo Ocidental a partir do século XIV. 

Com as grandes descobertas marítimas iniciadas no século XV, surgiu o livro de direito privado Guidon de La Mer, que incluía a definição da avaria grossa e tratava de questões do direito marítimo como fretes, empréstimos marítimos, entre outros. 

Todavia, foi em 1681, na França, que surgiu o Ordonnance de la Marine, definindo o instituto da avaria grossa como é hoje, permitindo a constituição da fonte do primeiro diploma que consagrou as avarias nos usos do mar – o Regulamento de 1820. 

No Brasil, o conceito de avaria grossa passou a ser regulamentado pelo Código Comercial de 1850, o qual adotou as diretrizes estabelecidas no Regulamento de 1820. É importante ressaltar que esse conceito é amplamente reconhecido e aplicado pelos tribunais brasileiros. Vejamos um precedente sobre o tema, dentre diversos existentes1: 

APELAÇÃO – TRANSPORTE MARÍTIMO – AVARIA GROSSA – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. TRANSPORTE MARÍTIMO – Avaria grossa verificada quando da explosão de contêiner em navio em que transportadas mercadorias de propriedade da autora da ação – Necessidade de realização de esforços extraordinários para salvamento da carga – Recusa da autora ao pagamento da contribuição exigida de todos os proprietários de carga, insurgindo-se contra a retenção dos conhecimentos de transporte – Recusa injustificada – Regras do comércio marítimo que impõe o dever de pagamento ou ofertar garantia, sob pena de retenção das mercadorias, o que foi deferido em favor da ré em diversas ações ajuizadas – Valor preliminar da garantia apurado por empresa especializada, sem elementos que evidenciem abuso – Valor definitivo que poderá ser contestado oportunamente. SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO.

(TJSP; Apelação 1032282-49.2015.8.26.0002; Relator Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 07/02/2017) 

Destaca-se que, à época, o sistema de avaria grossa não atendia às demandas dos mercados globalizados e transnacionais. Como resultado, as disparidades nas decisões dos Tribunais de diferentes jurisdições sobre o que era permitido ou não nesse contexto contribuíram para um movimento crescente em favor de um sistema uniforme e abrangente para regular a avaria grossa. 

Ao longo da evolução histórica e a implementação de diversas leis que regem as regras da avaria grossa, surgiram diferenças entre a jurisprudência inglesa e da Europa Continental após meados do século XIX. Essas discrepâncias tornaram-se preocupantes, levando a um primeiro passo para integrar as regras da avaria grossa visando resolver questões do cenário internacional. 

Com isso, em 1860, foram estabelecidas as primeiras 11 regras relacionadas à avaria grossa, conhecidas como Glasgow Rules. Posteriormente, em 1864, deu-se início ao projeto de código da avaria grossa, que resultou na redação das regras de York. Após uma revisão, essas regras evoluíram para a criação das Regras de York-Antuérpia de 1877. 

Em 1924, as Regras Letradas de A a G foram adicionadas às Regras de York-Antuérpia, representando disposições gerais, definindo a avaria grossa ou comum através dos princípios ali expostos. Enquanto as Regras Numeradas em algarismos romanos foram modificadas para atender às exigências comerciais e técnicas em expansão, dispondo de exemplos específicos a respeito dos sacrifícios e despesas que devem ser rateados na avaria grossa, bem como sobre valores contributivos. 

As Regras de York-Antuérpia foram revisadas em diversas ocasiões subsequentes, sendo em 1950, 1974, 1990, 2004 e 2016, visando se adequarem às mudanças e avanços nos setores marítimos e de seguros. 

De uma forma geral, as Regras atuais sobre o instituto servem para especificar que todas as partes envolvidas em uma aventura marítima devem compartilhar proporcionalmente quaisquer perdas resultantes de sacrifícios feitos à carga para salvar o restante. 

Com efeito, em que pese as longínquas fontes do Direito Marítimo, torna-se evidente a necessidade de evolução dos institutos visando regular situações que aumentam em complexidade na medida em que o processo de globalização foi acelerado e as relações comerciais e o transporte na via marítima seguiram tendo um papel de vanguarda no comercio internacional. 

Justamente nesse sentido que, de forma muito benéfica ao direito marítimo internacional e a todos os consumidores do transporte marítimo e do comércio internacional, verificou-se a necessidade de codificar de forma uniforme o instituto da avaria grossa. Nesse sentido, as Regras de York-Antuérpia (YAR), que regulam internacionalmente as avarias por meio de um documento voluntário, passaram a ter caráter obrigatório entre os países signatários e aos contratantes de transporte marítimo – visto que são amplamente adotadas pelos contratos internacionais – e representaram um relevantíssimo avanço não apenas para este ramo do direito, mas também para a economia mundial. 

Vale aqui um destaque final acerca da aplicação das Regras de York-Antuérpia no contexto jurídico brasileiro. De acordo com o art. 7622 do Código Comercial Brasileiro, quando a lei brasileira for aplicável, a regulamentação da avaria grossa seguirá as disposições do Código. Nesse sentido, as Regras de York-Antuérpia serão utilizadas apenas em caráter subsidiário, se forem acordadas entre as partes envolvidas.


1 Para mais jurisprudência a respeito da avaria grossa, acessar o Livro de Jurisprudência Marítima aqui.

2 Art. 762 – Não havendo entre as partes convenção especial exarada na carta partida ou no conhecimento, as avarias hão de qualificar-se, e regular-se pelas disposições deste Código.

Fonte: Migalhas