Posicionamento está na Solução de Consulta nº 85, editada pela Coordenação-Geral de Tributação, que orienta os fiscais do país
Por Luiza Calegari — De São Paulo
22/08/2025 05h02 ·
Atualizado há 4 minutos

A Receita Federal entendeu que os valores pagos para trabalhadores marítimos a título de folga indenizada devem ser incluídos na base de cálculo das contribuições previdenciárias e a terceiros – como o Sistema S – e do Imposto de Renda (IRPF). O posicionamento está na Solução de Consulta (SC) nº 85, editada pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), que orienta os fiscais do país.
O órgão apontou que esses pagamentos têm natureza salarial, e não indenizatória, como defendem os contribuintes. E, portanto, devem integrar a base de cálculo dos tributos. Não há jurisprudência específica sobre o tema no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) tem entendimento majoritário favorável às empresas.
A posição da Receita afeta as empresas de exploração de óleo e gás, que têm um regime de trabalho diferenciado, regido pela Lei nº 5.811, de 1972. De acordo com os artigos 2º, 3º e 4º, o empregado que fica embarcado pode ter um turno de 12h, com direito a um repouso de 24h para cada turno trabalhado. Os empregados que atuam no apoio operacional poderão ser mantidos em regime de sobreaviso, com direito a um descanso de 24h para cada 24h de sobreaviso.
Para garantir as operações, a empresa que consultou a Receita informou que os funcionários precisam permanecer embarcados e trabalhar em revezamento, em turno de 12h ou regime de sobreaviso, sempre ao longo de 15 dias consecutivos. Diante disso, a empresa firmou um acordo coletivo com o sindicato para estabelecer uma indenização para as situações em que as folgas são devidas, mas por algum motivo não foram usufruídas, seja por necessidade de trabalho ou de treinamento. Nesses casos, o trabalhador recebe uma indenização, equivalente ao dobro da hora de trabalho por cada hora de folga não gozada. É a chamada “dobra offshore” ou “folga indenizada”.
A empresa entende que o pagamento da folga indenizada tem natureza de indenização, já que se presta a reparar os empregados que não conseguirem usufruir do direito à folga. Assim, não deveria incidir sobre essa verba nenhuma contribuição social nem Imposto de Renda.
Para a Receita Federal, no entanto, não se trata de folga indenizada, mas sim de hora extra trabalhada, o que a equipara ao descanso semanal remunerado, que, para todos os demais trabalhadores, tem natureza remuneratória e, portanto, integra a base de cálculo dos tributos.
Segundo o órgão, até a expressão usada pela empresa, folgas indenizadas, é inadequada, “pois as folgas não são indenizadas, mas sim remuneradas novamente (de forma simples ou múltipla), seja em razão de serviços efetivamente prestados na plataforma offshore, ou do tempo dedicado a treinamentos de interesse do empregador”.
O maior problema, segundo Daniel Tessari, do Kincaid Mendes Vianna Advogados, é que a jurisprudência do TRF-2, com sede no Rio de Janeiro, Estado que concentra 88% da exploração de petróleo do país, segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), é majoritariamente favorável ao contribuinte nesse assunto. Dessa forma, o entendimento da Receita estaria incentivando a judicialização.
Uma decisão da 3ª Turma Especializada, já transitada em julgado, reconheceu que a dobra offshore “visa a retribuição de folga não gozada, tendo, portanto, natureza indenizatória” (processo nº 0148397- 07.2015.4.02.5101).
Em outro processo, o colegiado ressaltou que “o valor pago pela empregadora a esse título não objetiva remunerar horas extras, mas sim indenizar o trabalhador pelos dias de descanso não gozados, em razão de necessidade de serviço, já que as suas folgas teriam sido suprimidas e ele continuou embarcado por mais tempo do que o originariamente pactuado” (processo nº 5041384-14.2022.4.02.5101).
O STJ nunca analisou as dobras offshore, mas tem entendimento de que folgas não gozadas convertidas em pagamento não integram a base de cálculo da contribuição previdenciária nem das contribuições a terceiros. Um precedente da 2ª Turma, de 2009, impediu a Receita Federal de cobrar tributo no caso de “folgas não gozadas” (REsp 712185). Outras decisões, colegiadas e monocráticas, vêm aplicando o mesmo entendimento desde então (REsp 1867829, REsp 2055003 e REsp 1956866).
Daniel Tessari destaca que, ao adotar entendimento contrário ao da jurisprudência, a Receita aumenta o custo operacional das empresas. “Isso gera o custo de contratação do escritório, ajuizamento da medida judicial, e tudo isso para uma jurisprudência que está muito madura”, diz. “Especialmente em relação ao Imposto de Renda, os entendimentos são favoráveis para os próprios empregados.”
Se o trabalhador não goza dos dias de descanso, está tendo um prejuízo e, por isso, está sendo ressarcido em dobro, destaca Alessandro Cardoso, sócio do Rolim Goulart Cardoso Advogados. “É uma questão interpretativa, mas é muito importante, porque essa análise é motivo de muitas controvérsias entre o Fisco e o contribuinte”, afirma.
Além disso, o entendimento da Receita criou uma distorção dentro da própria empresa, uma vez que empregados que já obtiveram decisões judiciais favoráveis para não precisar recolher o Imposto de Renda estarão recebendo um valor líquido mais alto que seus colegas que não ingressaram com ações, aponta Matheus Bueno, do Bueno Tax Lawyers.
“Sem uma decisão vinculante, no entanto, me espantaria ver a Receita Federal dando o braço a torcer sobre esse assunto. Ela vai tentar fazer um jiu-jitsu tributário de que o pagamento está compensando a perda de um direito que, se tivesse ocorrido, seria salário também”, diz.
Segundo ele, agora que o mercado conhece o entendimento do Fisco sobre o assunto, as empresas têm consciência de que podem vir a ser autuadas a qualquer momento. “A solução vai acabar sendo judicializar.”
Procurada pelo Valor, a Receita Federal não se manifestou até o fechamento da edição.