Agora é fato: às vésperas da virada do ano, o governo, enfim, regulamentou a Lei do Gás, fruto de um longo processo de discussão envolvendo os agentes do mercado, a nova legislação traz consigo muitas expectativas e quantidade similar de incertezas quanto ao seu real impacto no desenvolvimento do mercado nos próximos anos.
A regulamentação praticamente nada mudou em relação ao texto final do projeto de lei aprovado no Congresso, em dezembro de 2008, e sancionado pelo então presidente Lula no início de 2009. A exceção fica por conta do item sobre contingenciamento no suprimento, que ganhará um marco específico. No mais, o regime de concessão para novos gasodutos e o reconhecimento das figuras de consumidor livre, autoprodutor e autoimportador continuam como as principais novidades, por sinal, muito bem vistas pelo mercado.
Entretanto, comemorações à parte, é hora de trabalhar. Com o regulamento em mãos, é preciso dar seguimento a uma longa agenda de trabalho para desenvolver a indústria. A EPE, por exemplo, terá a missão de elaborar, a partir deste ano, um plano decenal de expansão da malha de gasodutos. É esse planejamento, antes a cargo da Petrobras, que vai definir os novos projetos de infraestrutura de transporte a serem licitados. E a ANP terá de correr para criar regulamentos específicos para o energético.
O ano será agitado também para os governos estaduais. Mesmo com um marco regulatório de âmbito federal, a criação do mercado livre de gás ainda depende das iniciativas estaduais para elaboração de legislações próprias sobre o assunto.
Já para os players do mercado, com as regras definidas, é hora de planejar para aproveitar ao máximo as mudanças e viver, na prática, a legislação.
COMO FICA O MERCADO
Concessão para gasodutos
O que diz a lei: Antes sujeita às conveniências da Petrobras, a expansão da malha passa a ser planejada pelo MME. Novos projetos indicados pela EPE serão postos em licitação. O regime de autorização fica mantido para gasodutos internacionais, atuais dutos da Petrobras e projetos ainda não construídos com licenciamento abertos ou concluídos até março de 2009. A licitação fica sob responsabilidade da ANP. Ganha quem apresentar a menor receita anual, com direito a contrato de concessão de 30 anos.
Como fica a Petrobras: Toda a sua estrutura já construída permanece sob seu comando, sem alteração nas regras anteriores à lei. Por outro lado, terá de concorrer pela construção de novos gasodutos.
Como ficam os transportadores: Concessão pode atrair novos players, mas eles dependerão do aumento de investidores ou de subsídios do governo.
Acesso de terceiros
O que diz a lei: Fica assegurado o acesso de terceiros aos gasodutos de transporte, respeitados os perãodos de exclusividade. Nesse caso, os contratos deverão ser firmes para a capacidade disponível e interruptíveis para contratação de capacidade ociosa. O swap também fica permitido.
Como fica o transportador: Deixa de ter o mercado que estimou quando construiu o duto, mas a lei pode estimular a utilização plena dos gasodutos. No caso do swap, tem garantia da cobertura de seus custos adicionais decorrentes da operação.
Como ficam os consumidores: Podem construir dutos para seu uso específico sem depender da iniciativa das distribuidoras estaduais, bem como negociar a compra de gás diretamente com um produtor a preços mais atrativos. No entanto, a rede deverá ser incorporada ao patrimônio das distribuidoras, a quem os consumidores terão de pagar tarifas de operação e manutenção.
Como ficam as distribuidoras: Garantem seu direito constitucional de monopólio estadual, mas terão de aceitar o consumidor livre e futuros agentes comercializadores.
Como fica a Petrobras: terá de pagar às distribuidoras tarifas de O&M pelo transporte de gás até suas novas refinarias, UTEs e Fafens. Por outro lado, poderá negociar a venda de gás diretamente com consumidores finais, sem passar pelas distribuidoras.
Importação e exportação
O que diz a lei: Empresas poderão receber autorização para importar ou exportar gás e construir e operar unidades de liquefação e regaseificação, gasodutos de transferência e escoamento.
Como ficam os consumidores: garantem direito de produzir seu próprio gás ou importar para consumo próprio.
ANP sai fortalecida
Muito do sucesso da Lei do Gás dependerá das instituições públicas, uma vez que a legislação fortaleceu as frentes de atuação do MME e da ANP. A agência, aliás, terá papel importante na complementação da lei. “Para que o mercado aconteça, de fato, precisamos avançar em outros pontos, como o detalhamento das regulamentações pela ANP. Ainda há uma agenda de trabalho muito importante”, destaca o presidente-executivo da Abrace, Paulo Pedrosa.
De fato, o trabalho da ANP promete ser pesado. A autarquia será responsável por definir ainda uma série de aspectos que precisam ser detalhados para que a legislação cumpra seu papel de atrair novos players para a indústria. Uma das questões mais urgentes, defende Pedrosa, é a definição das capacidades disponível e ociosa dos gasodutos que poderão ser negociadas com os carregadores. Com a permissão do acesso de terceiros aos gasodutos de transporte, caberá à ANP estabelecer também os critérios para definir os valores devidos por esse acesso.
Até junho, a agência deverá ainda reclassificar os gasodutos hoje existentes entre dutos de transporte, escoamento de produção ou transferência. Essa definição será providencial para a aplicação correta da lei, sobretudo no que diz respeito ao fim do acesso do consumidor final aos gasodutos de transporte sem passar pelas distribuidoras – uma das mudanças com maior potencial de impacto sobre o mercado.
GNL, GNC e usuário final
O advogado Gustavo Mano, da OAB/RJ, critica ainda a falta de uma definição mais clara de alguns conceitos que permitam diminuir conflitos entre as legislações federal e estaduais. Para ele, persistem ambigüidades, que deverão ser corrigidas caso o governo não queira ver conflitos judiciais entre os diversos agentes do mercado.
Um desses casos envolve o GNL e o GNC. A legislação os reconhece como produtos para transporte, mas deixa em aberto se o usuário desses sistemas é ou não final. O grande problema disso é não se saber quem deve e quem não precisa obrigatoriamente ser servido pela distribuidora estadual, uma vez que a legislação oficializa o fim do acesso de consumidores finais aos gasodutos de transporte. “Uma planta de GNL ou compressão de GNC é um usuário final ou não? Em princípio, a empresa que liquefaz o gás não está consumindo o energético”, explica.
O advogado lembra que hoje já existe um caso de disputa judicial no STF, envolvendo a Gás Local, por causa de uma falta de clareza jurídica em relação à planta de liquefação de Paulínia (SP). Na Justiça, Petrobras e Comgás travam uma disputa para ver quem tem o direito de abastecer a unidade. “Ou seja, quais seriam as hipóteses de by pass físico da distribuidora? Isso tudo tem que ser medido”, sugere Mano.